Diante das infindas manifestações que se
alastram pelo Brasil afora e tudo que se tem escrito e falado sobre o ou os
significados delas, nos deparamos com dois textos que, na minha humilde
opinião, retratam muito bem este momento. O primeiro é este texto da TERESA URBAN falecida em
Curitiba, aos 67 anos, dia 26 de junho de 2013 e o segundo de Leonardo Boff,
que será postado neste blog a seguir (postagem 72). Na sequência publicaremos texto pertinente que fará um paralelo entre o que está acontecendo na sociedade e o que tem ocorrido no seio de nossa classe.
Não se trata de “desvio
de foco” de nossa parte, uma vez que este blog tem por tema a Ética na
Odontologia. Entendemos que estes dois textos tem muito a nos dizer como
pertencentes a uma classe de profissionais inseridos neste mundo caótico em que
está se transformando nossa sociedade. Não basta que cada um “faça a sua parte”
e sim que lance um olhar ao seu redor para ver e entender o que se passa com o
vizinho, com os nem tão próximos, que nos mobilizemos para tentar harmonizar as
nossas relações sociais pois, com este andar da carruagem a que estamos “passivamente”
assistindo, o que se anuncia será terrivelmente avassalador.
Ruth Bolognese recebeu este texto da Teresa Urban, o
último que ela escreveu antes de falecer dia 26/06/2013 à noite. É uma reflexão
sobre os acontecimentos destes dias. Lúcida, afiada, procura mostrar à amiga o
caráter do movimento que levou milhares às ruas.
Eis o texto.
Olá Ruth, estou sem falar há dez dias, não por perplexidade mas por ordens
médicas. O silêncio, neste barulho todo, me obrigou a pensar mais do que agir e
foi uma experiência muito nova para mim. Montar um quebra-cabeças destes é
difícil, amiga, porque a primeira coisa que descobri é que nem mesmo falamos a
mesma língua (hoje li em algum lugar que não tem tecla SAP para isso). Abrimos
um fosso tão grande entre o que chamamos de povo brasileiro e as elites
(governo, políticos, ricos, intelectuais, jornalistas, esquerdistas, nós) e
agora estão em nossa frente, serpenteando pelas ruas das cidades, anunciando
sua existência.
Bom, quanto tempo
faz que a gente não se pergunta como as pessoas se sentem nas cidades
massacrantes, nos ônibus entupidos, na falta de respeito de motoristas com
pedestres, de motociclistas com motoristas, de professor com aluno, de aluno
com professor, de jovem com velho, de velho com jovem, de meninos de rua com
gente de bem, de trabalhadores endividados pelo consumo fácil, de falta de
amor, de médicos gelados como pedra, de gente entediada, de tráfico, de meninos
mortos na periferia, de prisões lotadas, de crimes impunes…longa lista.
Lembra, Ruth, como foi o êxodo rural dos anos 70? Perderam-se as raízes. as cidades
viraram amontoados humanos de um nível crescente de hostilidade, mas a gente
vai levando. Vizinhos, comunidade, amigos, partido, Estado que protege os mais
fracos ??? bobajada, mano velho, vamos tocando, tem time de futebol. Tenho
pensado muito em algumas palavras: pertencimento e desgarrados
Bem, deu no que
deu, não somos um país, somos um monte de “eu”, cada um com seu cartaz, seu
facebook e nada que os ligue.
Pode ser que um
monte de eu se sinta pertencendo a alguma coisa, assim juntos na rua… A crise é
de representatividade? é, mas não tão simples que uma reforma partidária
resolva.
Lembrei muito de
uma cena antiga, quando contestávamos a instalação da Renault nos mananciais e alguém perguntou
quem representava a empresa naquela discussão. E um velhinho sem dentes, paletó
de mangas curta que não conseguiam esconder os rotos punhos da camisa, levantou
o braço e disse: eu represento a Renault. Nunca esqueci
disso porque não entendi qual a crença que levou aquele homenzinho a fazer isso
(ninguém mandou, ele estava muito sozinho ali), mas acho que foi um momento de
ousadia incrível.
Dizer eu me
represento é mais ousado ainda e muito mais perigoso, Ruth. Ninguém representa ninguém naquela multidão, talvez depois, na foto no
facebook, troquem suas representatividades. Chegamos a isso por negligência e
prepotência e agora é um trabalho danado de grande voltar a pensar em coisas
pequenas para fazer contato com os alienígenas. Quem sabe aquele dedinho do ET
de Spilberg tocando o dedo do
menino ajude…
Agora, o que é
mesmo ruim nesta história é o que a brava imprensa brasileira fez: criou uma
nova espécie, sem nenhum estudo, nehuma base científica, sem nenhuma pergunta: “homo
sapiens vandalus lamentavilis”. Ruth, que vergonha
tenho de ser jornalista. Quem são, afinal, aqueles meninos que não temem a polícia,
que devolvem as bombas, que chutam tudo com fúria, que saem das lojas saqueadas
com sacolas e somem na escuridão? Quem são, quantos são, onde vivem, de onde
surgiram? São brasileiros ou só são brasileiros os que serpenteiam sem rumo?
São os dentes da
fera, Ruth, só os dentes. O resto, a gente não
conhece. Enquanto continuarem dividindo o país entre manifestantes e vândalos
ou, como ontem na OTV, uma repórter mais perdidinha dizia, protestantes e
fanáticos, não vai dar para entender o que de fato acontece.
Outro pior é a
legitimização e o aplauso à repressão policial. Não sei se você viu, mas ontem
havia uma galera na frente do Palácio Iguaçu (pra Curitiba,
bastante gente, umas 10 mil pessoas?) quietos, sem nada que dizer, às vezes
cantavam algo tipo “sou brasileiro com muito orgulho” exibiam caras e cartazes
para a câmara de TV, andavam de um lado para o outro e só, só, só. Não sei
porque estavam ali. Passaram reto pela Câmara, pela Prefeitura, estavam ao lado
da Assembleia Legislativa mas pararam na frente do Palácio às escuras. Ninguém
para falar, nem por eles nem para eles nem com eles. Foi uma cena muito
surreal, que durou tempo, debaixo de chuva e frio.
De repente, do
nada, o Palácio do Governo começa a vomitar uma enfurecida tropa de choque que
sai jogando bomba, atirando bala de borracha sem mais. Joãozinho estava lá, Thiago estava lá, Dani, filha de Clovis, estava lá. E mais uma galera de meninos que só
estavam lá. Pelo tanto de luz de celular, era pra mostrar depois no face. Só
então, na correria do depois, que os dentes surgiram na escuridão e começaram a
morder a propriedade, pública ou privada, não importava.
Bom, Ruth, quando vi aquilo – polícia, cachorros, cavalos, bombas e os meninos
correndo em desespero, chutando e quebrando tudo -, depois de muito, mas muito
tempo na minha vida marvada, chorei.
Realmente, um texto derradeiro de muita profundidade. Merece reflexão plena! Parabéns pela postagem que está, com certeza, concernente, coerente com o perfil do ótimo blog.
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