28/06/2013
Como prometido, publicamos o texto produzido por Leonardo Boff. Este também contundente como o anterior. O momento está pedindo um olhar mais atento e uma reflexão séria. Não podemos nos calar diante da enxurrada de medidas meramente "marqueteiras" que veem sendo adotadas pelas autoridades, em todas as esferas - nacional, estadual, municipal, poder executivo, legislativo, judiciário, situação e oposição - cada um tentando jogar a responsabilidade pelo caos instalado aos outros como se isto não fosse resultante de um conjunto de "más ações" ou falta de "boas ações" na administração da Nação, em que todos são responsáveis, sem exceção, inclusive nós, enquanto integrantes das classes mais bem informadas, que nos calamos por tantos e tantos anos diante dos desmandos, da falta de responsabilidade, da corrupção, etc...
BOA LEITURA
Um espírito de insurreição de massas humanas está varrendo o mundo todo,
ocupando o único espaço que lhes restou: as ruas e as praças. O movimento está
apenas começando: primeiro no norte da África, depois na Espanha com os
“indignados”, na Inglaterra e nos USA com os “occupies” e no Brasil com a
juventude e outros movimentos sociais. Ninguém se reporta às clássicas bandeiras do socialismo, das esquerdas,
de algum partido libertador ou da revolução. Todas estas propostas ou se
esgotaram ou não oferecem o fascínio suficiente para mover as massas. Agora são
temas ligados à vida concreta do cidadão: democracia participativa, trabalho
para todos, direitos humanos pessoais e sociais, presença ativa das mulheres,
transparência na coisa pública, clara rejeição a todo tipo de corrupção, um
novo mundo possível e necessário. Ninguém se sente representado pelos poderes
instituídos que geraram um mundo politico palaciano, de costas para o povo ou
manipulando diretamente os cidadãos.
Representa um
desafio para qualquer analista interpretar tal fenômeno. Não basta a razão
pura; tem que ser uma razão holística que incorpora outras formas de
inteligência, dados aracionais, emocionais e arquetípicos e emergências,
próprias do processo histórico e mesmo da cosmogênese. Só assim teremos um
quadro mais ou menos abrangente que faça justiça à singularidade do fenômeno.
Antes de mais nada,
importa reconhecer que é o primeiro grande evento, fruto de uma nova fase da
comunicação humana, esta totalmente aberta, de uma democracia em grau zero que
se expressa pelas redes sociais. Cada cidadão pode sair do anonimato, dizer sua
palavra, encontrar seus interlocutores, organizar grupos e encontros, formular
uma bandeira e sair à rua. De repente, formam-se redes de redes que movimentam
milhares de pessoas para além dos limites do espaço e do tempo. Esse fenômeno
precisa ser analisado de forma acurada porque pode representar um salto civilizatório
que definirá um rumo novo à história, não só de um país mas de toda a
humanidade. As manifestações do Brasil provocaram manifestações de
solidariedade em dezenas e dezenas de outras cidades no mundo, especialmente na
Europa. De repente o Brasil não é mais só dos brasileiros. É uma porção da
humanidade que se identifica como espécie, numa mesma Casa Comum, ao redor de
causas coletivas e universais.
Por que tais
movimentos massivos irromperam no Brasil agora? Muita são as razões. Atenho-me
apenas a uma. E voltarei a outras em outra ocasião.
Meu sentimento do
mundo me diz que, em primeiro lugar, se trata de um efeito de saturação: o povo
se saturou com o tipo de política que está sendo praticada no Brasil, inclusive
pelas cúpulas do PT (resguardo as políticas municipais do PT que ainda guardam
o antigo fervor popular). O povo se beneficiou dos programas da bolsa família,
da luz para todos, da minha casa minha vida, do crédito consignado; ingressou
na sociedade de consumo. E agora o que? Bem dizia o poeta cubano Ricardo
Retamar: “o ser humano possui duas fomes: uma de pão que é saciável; e outra de
beleza que é insaciável”. Sob beleza se entende educação, cultura,
reconhecimento da dignidade humana e dos direitos pessoais e sociais como saúde com qualidade minima e transporte menos desumano.
Essa segunda fome
não foi atendida adequadamente pelo poder publico seja do PT ou de outros
partidos. Os que mataram sua fome, querem ver atendidas outras fomes, não em
ultimo lugar, a fome de cultura e de participação. Avulta a consciência das
profundas desigualdades sociais que é o grande
estigma da sociedade brasileira. Esse fenômeno se torna mais e mais intolerável
na medida em que cresce a consciência de cidadania e de democracia real. Uma
democracia em sociedades profundamente desiguais como a nossa, é meramente
formal, praticada apenas no ato de votar (que no fundo é o poder escolher o seu
“ditador” a cada quatro anos, porque o candidato uma vez eleito, dá as costas
ao povo e pratica a política palaciana dos partidos). Ela se mostra como uma
farsa coletiva. Essa farsa está sendo desmascarada. As massas querem estar
presentes nas decisões dos grandes projetos que as afetam e que não são
consultadas para nada. Nem falemos dos indígenas cujas terras são sequestradas para
o agronegócio ou para a indústria das hidrelétricas.
Esse fato das
multidões nas ruas me faz lembrar a peça teatral de Chico Buarque de Holanda e
Paulo Pontes escrita em 1975:”A Gota d’água”. Atingiu-se agora a gota d’água
que fez transbordar o copo. Os autores de alguma forma intuíram o atual
fenômeno ao dizerem no prefácio da peça em forma de livro: “O fundamental é que a vida brasileira possa, novamente, ser devolvida,
nos palcos, ao público
brasileiro…Nossa tragédia é uma tragédia da vida brasileira”. Ora, esta tragédia é
denunciada pelas massas que gritam nas ruas. Esse Brasil que temos não é para
nós; ele não nos inclui no pacto social que sempre garante a parte de leão para
as elites. Querem um Brasil brasileiro, onde o povo conta e quer contribuir
para uma refundação do pais, sobre outras bases mais
democrático-participativas, mais éticas e com formas menos malvadas de relação
social.
Esse grito não pode
deixar de ser escutado, interpretado e seguido. A política poderá ser outra
daqui para frente.
Leonardo Boff é autor de Depois de 500 anos: que Brasil queremos? Vozes, Petrópolis 2000.
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